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Um Blogue de Ismael Sousa

A perspetiva de um homem num mundo tão igual.

Só podia ser da chuva

por Ismael Sousa, em 29.12.17

Amanheceu de maneira estranha. O frio e a chuva faziam-se sentir. Uma orquestra de sopros e percussões tocava no exterior da casa, tocadas pela chuva e pelo vento. Virou-se na cama e fechou os olhos, novamente, na tentativa de adormecer outra vez. Amanhecera de maneira estranha, não pensava em nada, somente o vazio. E sentia-se morto, sem sentido. Tinha de ser do tempo. A chuva deixava-o assim, vazio, sentimentalista. Tinha de ser a chuva a culpada daquele estado tão vazio, tão oco, tão sem sentido. Só podia ser da chuva.

 

O despertador não tardou a tocar e as obrigações do trabalho fizeram-no levantar-se. Chegou tarde ao trabalho, sem a menor vontade de se sentar um dia inteiro em frente a um computador, olhando o infinito, devido à escassez de trabalho que a época proporcionava. Passou um olhar rápido sobre as noticias, tomou o café matinal. Sentia-.se estranho, num dia estranho. Não consegui especificar o que sentia, nem o que pensava. Tentou escrever, mas as palavras eram mais vagas que a neblina matinal que já não existia. Somente dentro de si existia um enorme nevoeiro, impedindo a vista para a compreensão daquele estado estranho em que se sentia. Sentiu a necessidade de ler algo que dissipasse aquele sentimento, que lhe desse um pouco de luz. Era muito esquisito no que tocava à leitura. Detestava romances de cordel, detestava livros que não o fizessem sentir algo. Lia muitas coisas, mas poucas eram as que verdadeiramente gostava. Algumas leituras eram mera obrigação. Outras, excêntricos momentos de prazer.

 

Percorreu com os olhos as prateleiras da biblioteca, tentando encontrar algo que lhe rejuvenescesse a alma. Passou uma e outra vez. Decidiu-se por poesia, aquela forma de escrever que ele não dominava, mas que dizia tantas coisas, que preenchiam tantos momentos. A poesia era, para ele, a maior libertação da alma. Era nela que se diziam tantas coisas, com palavras escolhidas a dedo, com palavras fictícias e que diziam coisas totalmente contrárias ao que sentia. Um emaranhado de palavras e sentimentos, de sorrisos e lágrimas.

 

“O Medo” foi o título que lhe saltou à vista. Tinha já procurado obras daquele autor por entre os inúmeros livros que jazem nas prateleiras da biblioteca, que todos teimam em deixar morrer ali, cobertos de pó e de mofo. Abriu o livro e deixou-se escorregar pela madeira fria da estante. Mergulhou na leitura, indiferente ao que o rodeava. Mergulho na doçura das palavras, na forma indiferente como tinham sido escritas, nos sentimentos que elas despertavam. Deixou-se mergulhar naquele mundo que existia, agora, só entre ele e aquele livro de folhas amarelas, capa gasta e esbatida, com os cantos dobrados. Pela lombada percecionava-se que aquele livro não havia sido lido muitas vezes, se é que alguma vez foi lido por alguém. O gasto do livro era somente a marca dos anos, de ser empurrado de um lado para o outro, de ser deixado de parte, ignorado. E como aquele livro, outros tantos que morreram em estantes, sem que alguém tivesse interesse neles. Autênticas grutas para tesouros escondidos, aventuras por descobrir, sentimentos por explorar.

 

Mergulhou na leitura de forma intensa, saboreando cada palavra, relendo cada página. Mastigava as palavras, sentia-as como suas. A neblina, a bruma, o nevoeiro, a névoa que em si sentia, começou a dissipar-se, a tornar claro o que sentia e os seus pensamentos voltaram a emergir dentro de si. Era o maldito tempo que o fazia sentir-se daquela maneira, triste. O tempo que sempre influenciou o seu estado de espírito.

 

Afogou-se nas palavras, sentindo-se morrer e renascer novamente para um dia totalmente diferente. Corria-lhe no sangue as palavras simples e cruas, as frases escritas sem medos da opinião alheia. Li-a com que adivinhando cada palavra que se seguia à que acabara de ler. A forma poética da prosa que lia era como uma lufada de ar fresco no seu velho corpo, gasto pelo mundo e pela vida. Cada palavra “proibida” era como um novo despertar, uma nova forma de entender que aquilo que era não tinha que se sujeitar aos outros, mas ser, sempre e fielmente, aquilo que era. Cada página a revelação de que os alheios não poderiam voltar a interferir na sua vida, na forma como vivia. Sentia a genuinidade e precisava cada vez mais dela. Moldara-se durante demasiado tempo, deixando de viver, de se viver.

 

Quando submergiu do livro, as ideias em sua mente eram mais claras. Precisava acabar com os tabus que o impediam de escrever, com as opiniões que o impediam de viver e que o prendiam. Era tempo, urgia a necessidade. Não poderia desistir por causa de sentimentos tão banais. Apertou o livro contra o peito e deixou que cada palavra ficasse gravada na sua mente, no seu corpo, no seu ser. Apertou o livro contra o peito, entre os braços com o olhar no infinito.

 

Deixou-se ficar e um sorriso brotou.

 

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